Crônica de Rubem Braga

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Texto 01


Recado ao Senhor 903

Vizinho,
Quem fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do zelador, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita pessoal – devia ser meia-noite – e a sua veemente reclamação verbal. Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda teria ao seu lado a Lei e a Polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem direito a repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor; é impossível ao 903 dormir quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a Leste pelo 1005, a Oeste pelo 1001, ao Sul pelo Oceano Atlântico, ao Norte pelo 1004, ao alto pelo 1103 e embaixo pelo 903 – que é o senhor. Todos esses números são comportados e silenciosos: apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos algum ruído e funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão: ao meu número) será convidado a se retirar às 21h45, e explicarei: o 903 precisa repousar das 22 às 7 pois as 8h15 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o levará ate o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida, vizinho, está toda numerada: e reconheço que ela só pode ser tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita, ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas – e prometo silêncio.
[...] Mas que me seja permitido sonhar com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e dissesse: ‘Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa. Aqui estou’. E o outro respondesse: ‘Entra vizinho e come do meu pão e bebe do meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e a cantar, pois descobrimos que a vida é curta e a lua é bela’.
E o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade entre os humanos, e o amor e a paz.”



                                                                          Texto 02


Morte ao crack
Adalberto dos Santos
Peço desculpas aos que me leem neste site. Não pude escrever minha croniqueta no último sábado. Chegou a noite da sexta e não pude. Nem durante a madrugada do sábado consegui preparar o escrito. Não por falta de assunto, claro. Esse ainda havia. Literalmente o mundo está fervendo. E demais. Literariamente também. Sempre há assunto. Os que escrevem sabem que não falta o que dizer quando se quer escrever. No caso da crônica, é um pouco diferente, porque, como já se disse por aí, é um muito difícil. Toda vez o cara tem que comer o diabo que amassou o pão. E sem assado ou tempero. Sofre a dor do parto com a caneta entre os dedos e às vezes não sai nem um milionésimo de palavra.
Não faltou mesmo que dizer, juro. Negócio é que às vezes se tem o que dizer, mas não se tem a alma suficientemente capaz de deixar a voz tagarela. Como se sabe, nem só a língua fala; a alma também. Na verdade, fala a alma pela língua. Mas, quando aquela sofre de algo, fica-se mudo, infeliz, incapaz. Foi o que me aconteceu no último fim de semana. Fiquei abatido com coisas que vi e não tive palavras para escrever. Minha aflição era muita.
Estava ainda na velha Paraíba colhendo lembranças de todos os tempos com amigos e não-amigos. Mas ali, já sombrio por ter encontrado minha cidade tão diferente (atolada na lama da hipocrisia em todos os sentidos), como fiz questão de lembrar a vocês, fiquei sabendo de um mal considerável que também a atinge. O mal do crack que já vitima jovens de todas as idades naquele rincão de Nordeste.

Tive náuseas de não dormir aquele fim de semana quando soube por fontes locais das séries de pequenos furtos realizados pelos usuários da droga em casas de todas as classes da cidade, em especial das pequenas residências de pessoas que, para não morrer à sorte do frio da noite, têm de seu apenas o teto. Nesses lares pequenos e apertados, que só cabem as redes onde os pais sertanejos descansam a penca de herdeiros da escassez de quase tudo, estão entrando os larápios, ou, como se diz na gíria dos locutores de noticiários policiais, os donos do alheio. O mais assustador é que já não furtam por precisão, como antigamente. Nem é para guardar o furto ou trocá-lo em objetos que desejam por inveja ou carência. Eles o fazem para transformar a obra do delito em dinheiro que enriquece fácil essa nova elite de pequenos milionários suburbanos, os traficantes do já conhecido mercado do crack brasileiro.
Os usuários, uns pobres, sequer se alimentam essas criaturas sem cor ou cara de criaturas. São os escravos da “pedra”, a mistura insípida que o jornal me diz ser o pó da cocaína e bicarbonato de sódio. Tristes crianças de menos de doze anos, outros são ex-vitaminados atletas, homens e mulheres que eu conheci na infância e que hoje a droga está afastando da família, da sociedade e deles próprios.

”Noiados”, como são chamados, em razão da possessão da droga, roubam tudo o que podem. À noite, entram nas casas por cima do telhado, pulam os muros, atravessam paredes como vampiros. Quando menos se espera, já têm levado pequenos objetos como vassouras, baldes, peneiras, bicicletas, restos de sabão, roupas no varal. Sutis feito um felino com fome, fazem a xepa para a volúpia do vício. Me disseram que um deles esperou um comerciante plantar a árvore no fim da tarde e mal os últimos moradores fecharam as portas depois da novela, cavou ao redor e levou consigo a muda. Moeda de troca. Ninguém ouviu o pisar dos pés ou o ofegar do pulmão viciado. Parece que cavou o chão com as unhas. Pela manhã bem cedo viram as pistas em suas mãos. Sujas de terra. Semelhante ao cão que escava um osso onde enterraram carne com veneno. Perguntado se havia levado a plantinha, não conseguiu responder. Não tinha forças. Estava sob efeito da segunda pedra das últimas duas horas.
Conheço o sujeito. Por sorte, enquanto estive na cidade, não consegui encontrá-lo. Acredito que teria perdido o restante da viagem. É triste ver gente tão jovem enganada por essas ilusões miseráveis. É ainda mais triste testemunhar que a lista aumenta a cada minuto. Drogas: ilusões que só desgastam, deprimem, matam sem piedade. Não morre o traficante, que se dá bem com a desgraça dos outros. Morte ao crack, então, esse abismo que tem engolido o planeta de uma ponta a outra, que tem aprisionado o corpo e a alma de infelizes sem casa e sem nome.

São tantos, meu Deus, que dá pena. Sofro porque quando a gente os vê, sabe que a vida deles é o preço da pedra; na matemática real, uns míseros cinco reais. Sem eles, que usa não a tem. Acaso, eles a dão de graça? Que nada. Apenas matam e enganam se não os pagam; no mínimo, eles lhes tiram até o que não têm. Em pouco tempo, não mais o orgulho de se sentir decente. Depois, nem as pequenas árvores, lindas e maravilhosas, como sempre foram, podem crescer tranquilas em direção ao céu. Crianças de menos de doze anos não podem crescer; sequer sonhar com a esperança de um céu. Onde? Quando?
 

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